28.12.05

Só daria a bunda depois de casar. E para o marido. Achava que deveria ter algo de virgem para oferecer e não restava muito. Entraria de branco, sim, mas de costas na igreja. "Pode beijar a noiva" seguido de um beijo romântico na nuca. Entraria no quarto e deitaria de bruços. Por mais louca que fosse, era santa. Era uma santa.


Quando as tias vieram visitá-la, tudo tinha que estar impecável. As cadelas farejadoras não deixariam passar um pó que fosse, ainda que de sujeira. Limpou, lustrou, areou. Montou o presépio com simetria e organização, vacas prum lado, ovelhas pro outro. Fitou a ovelha pretinha e se imaginou deitada ali. Sabia que era brega, odiava natal, mas fazer o quê?, achava presépios bonitinhos, um resquício de pureza ou pura culpa católica.


Precisava esconder a maconha. Sabia que uma a distrairia enquanto a outra, com fuça de são bernardo, abriria todas as gavetas em busca de indícios em cada recôndito do seu quarto-e-sala. Se achassem a maconha, estaria morta. De repente, teve uma idéia. Quanto mais óbvio o esconderijo, menos evidente. Precisava continuar a boa moça para receber a mesada em dia depois do relatório das velhas para os pais. Chegaram, comeram, bisbilhotaram. Sem achar nada, elogiaram o presépio e tudo ia bem até uma delas notar que Maria era ligeiramente diferente. A tia não falou nada, mas ficou intrigada.

No dia anterior, numa passeata pró-direito-ao-aborto, distribuía garrafinhas de água lilases na rua, em frente à igreja (longe da paróquia das tias, evidentemente). As beatas que saíam berravam ensandecidas, quase em línguas, condenando a heresia daquelas mulheres menores, nojentas e, claro, lésbicas, sempre são lésbicas as moderninhas. Para irritá-las, ela grita que se Maria tivesse tido opção, estaria livre das carolas pelo menos no Natal. Imaginou Maria a caminho de uma clínica de aborto e José sem acreditar nessa história de Espírito Santo, vai ter que tirar, você disse que era virgem etc.


Chega em casa feliz e com ódio. Simbolicamente, destrói as beatas, parentes ou não, jogando a peça materna de gesso do presépio no chão. Limpa o a sujeira, vai no armário e pega um anjo de biscuit que ganhara no ano passado, quebra-lhe as asas e põe no lugar da Madona.


As tias vão embora sem provas de má conduta e ela lembra da Madona, acrescenta um "n" mentalmente e começa a dançar. Precisava fumar um. Vai até o presépio, pega um pouco da grama - ri da ingenuidade das tias - e um papel de seda. Deita no quarto e se deseja um feliz natal.

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13.12.05


Perdido em São Paulo

Por trás de um lençol negro surgem os contornos de uma pessoa. Sou eu atravessando a rua, expelindo de meus pulmões a fumaça do caminhão. Passantes de os olhos consternados acompanham-me, solidários, em minha tosse e em minha pressa. Estou na calçada do meu prédio. Apesar da chuva, e da fumaça, respiro fundo antes de entrar.

Subindo no elevador, desvio o olhar do cara que está lá dentro. É o vizinho do lado. Só sei que fuma maconha e dá umas festas de vez em quando. Sei mais alguns detalhes sórdidos, daqueles que todo mundo tem e só quem sabe é o melhor amigo e o completo desconhecido que por acaso mora do outro lado da parede e viu ou ouviu tudo na hora em que acontecia. Apesar de morarmos em apartamentos contíguos, apesar dessa intimidade violada pela proximidade, nunca nos dirigimos uma só palavra cordial.

Em casa! Percebo que roubaram meu jornal, deve ter sido ele. Ele acorda mais cedo e leva o jornal, deve me achar um metido, deve achar que eu mereço que me roubem o jornal, talvez pelos meus segredos que ele também sabe. Uma vez coloquei um aviso sarcástico na portaria. "Prezado(a) vizinho(a), jamais me incomodei que levassem meu jornal, pois sou a favor da democratização da mídia no Brasil, mas seria gentil que, após sua leitura, o(a) senhor(a) devolvesse o impresso à minha porta. Agradecido".

Apartamento escuro, cheiro de mofo. Estou molhando o chão. Fecho a porta. As flores morreram há muito no vaso, mas eu ainda despejo um restinho de água de um copo que estava ali, só pelo gesto mesmo. Meu gato seguia com os olhos embaçados uma mosca que inutilmente se debatia contra o vidro. Ele é velho e gordo. Fugia muito e voltava arrebentado, dava muita despesa. Caparam o coitado. Foi melhor. Ele sossegou, não tinha mais muito que fazer na rua. Coloco o casaco úmido do lado dele, ele vira a orelha direita em minha direção sem parar de olhar a mosca. Acho que ele nunca me perdoou por ter lhe tirado as bolas.

Abro a janela e deixo a mosca sair. Mas com esse tempo, talvez fosse melhor ficar em casa. Olho pela janela: o vulto de um círculo branco se desenha através da poluição do céu cinza. Corro, em busca de uma visão melhor daquilo que, pela primeira vez no dia me trouxe a impressão de estar vivo. Seria noite de lua cheia? Não. Era só o holofote do novo supermercado do bairro.


Ice Coffee

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