13.12.05


Perdido em São Paulo

Por trás de um lençol negro surgem os contornos de uma pessoa. Sou eu atravessando a rua, expelindo de meus pulmões a fumaça do caminhão. Passantes de os olhos consternados acompanham-me, solidários, em minha tosse e em minha pressa. Estou na calçada do meu prédio. Apesar da chuva, e da fumaça, respiro fundo antes de entrar.

Subindo no elevador, desvio o olhar do cara que está lá dentro. É o vizinho do lado. Só sei que fuma maconha e dá umas festas de vez em quando. Sei mais alguns detalhes sórdidos, daqueles que todo mundo tem e só quem sabe é o melhor amigo e o completo desconhecido que por acaso mora do outro lado da parede e viu ou ouviu tudo na hora em que acontecia. Apesar de morarmos em apartamentos contíguos, apesar dessa intimidade violada pela proximidade, nunca nos dirigimos uma só palavra cordial.

Em casa! Percebo que roubaram meu jornal, deve ter sido ele. Ele acorda mais cedo e leva o jornal, deve me achar um metido, deve achar que eu mereço que me roubem o jornal, talvez pelos meus segredos que ele também sabe. Uma vez coloquei um aviso sarcástico na portaria. "Prezado(a) vizinho(a), jamais me incomodei que levassem meu jornal, pois sou a favor da democratização da mídia no Brasil, mas seria gentil que, após sua leitura, o(a) senhor(a) devolvesse o impresso à minha porta. Agradecido".

Apartamento escuro, cheiro de mofo. Estou molhando o chão. Fecho a porta. As flores morreram há muito no vaso, mas eu ainda despejo um restinho de água de um copo que estava ali, só pelo gesto mesmo. Meu gato seguia com os olhos embaçados uma mosca que inutilmente se debatia contra o vidro. Ele é velho e gordo. Fugia muito e voltava arrebentado, dava muita despesa. Caparam o coitado. Foi melhor. Ele sossegou, não tinha mais muito que fazer na rua. Coloco o casaco úmido do lado dele, ele vira a orelha direita em minha direção sem parar de olhar a mosca. Acho que ele nunca me perdoou por ter lhe tirado as bolas.

Abro a janela e deixo a mosca sair. Mas com esse tempo, talvez fosse melhor ficar em casa. Olho pela janela: o vulto de um círculo branco se desenha através da poluição do céu cinza. Corro, em busca de uma visão melhor daquilo que, pela primeira vez no dia me trouxe a impressão de estar vivo. Seria noite de lua cheia? Não. Era só o holofote do novo supermercado do bairro.


Ice Coffee

passado, pelas 13:13

6 Comments:

At dezembro 13, 2005 6:48 PM, Blogger loki, disse...

muito bom!

fazia tempo que eu não vinha aqui.
só não babo mais o ovo porque estou com preguiça.

então é isso.

abraços!

 
At dezembro 16, 2005 5:01 PM, Anonymous Anônimo disse...

Ice coffee
Eu nem deveria comentar o seu texto pq andei sabendo que vc está procurando comunidades para a minha pessoa. Pimenta nos olhos alheios é refresco, né? Mas como eu sou muito legal, vim aqui registrar que finalmente li o seu texto e gostei, realmente. Ri bastante. Continue contribuindo com o expresso com borra.

 
At dezembro 20, 2005 2:53 AM, Blogger Patr�cia disse...

Se você fosse o gato, perdoaria?
Gostei daqui.

 
At dezembro 22, 2005 1:59 PM, Anonymous Anônimo disse...

Eu não perdoava não.

 
At janeiro 27, 2006 3:49 PM, Anonymous Anônimo disse...

fiquei com dó do gato capado

 
At junho 12, 2006 4:56 PM, Anonymous Anônimo disse...

Definitivamente, São Paulo é uma merda!
Descafeinada.

 

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