17.6.11

Ocorreu, naquela tarde, que só poderia mesmo ter o nome de Manoel, pois antes do pai, toda linhagem paterna padecia da graça capaz de ser convertida em apelido tão doloroso. Parentes de toda natureza diziam que com ele, o último dos Manoéis, a alcunha fazia par perfeito, dada a pouca inteligência do rapaz. No sertão, a descendência portuguesa tinha sentido quase nenhum, mas os óculos lusitanos do tio-avô, homem que Manezim imaginava portando um robusto bigode castanho, reluziam na estante da sala como um santo. Não por acaso, os óculos tinham como vizinho um tríptico da Madona com o Menino Jesus, Santa Luzia e Santa Catarina, as três imagens envolvidas numa moldura menos nobre do que o dourado dos aros e da madrepérola das hastes. Manezim passava as horas mais quentes do dia, a sesta depois do almoço, deitado na rede do alpendre. A porta entreaberta deixava-o espiar o andor das lunetas de além-mar enquanto um vapor morno ia embalando seu sono de passarinho.

Desde menino, aqueles óculos posavam na estante e a única vez que ousou chegar perto levou um castigo de dias, tempo em que percebeu, folheando a bíblia dos Gideões na escrivaninha do irmão mais velho, que as letras lhe causavam vertigem. Criança quieta demais, foi tomado pelos pais como bobo e custou cinco anos para que estreasse a fala com a palavra 'mingau'. Há muito não se importava com o refrão dos primos 'Mané vai comer pasté', repetido por horas com a típica entonação de desprezo, o 'é' longuíssimo ao final. Manezim convenceu-se logo cedo que não era bem burro, é que não carecia conversar se não lhe perguntavam e a leitura não lhe caía bem porque as palavras voavam no papel por mais que tentasse agarrar uma ou outra. No quadro negro – aquilo era uma tortura –, se letra no papel já mexia, as de giz pareciam um traço de nuvem, era coisa difícil mesmo para ele desvendar os códigos tão bem desenhados pela professora Dona Deusa, uma senhorinha que já tantas vezes alertara aos pais do garoto sobre as questões de aprendizado e os aconselhou que o menino visitasse um doutor das vistas.

E um dia emendou no outro, Manezim cresceu assim, dado como mouco, sabendo ele mesmo que era entendido de coisas de roça e rês, antes de ciência de peteca e de cheiros de flores. Toda tarde de descanso no alpendre, ao fitar os óculos de Portugal – e ele os distinguia bem, apesar da distância –, meditava com o vai-e-vem da rede, imaginando a vida se tivesse outro nome, se como José ou João os outros não teriam lhe ralhado tanto. Era o mais novo da casa e assim só lhe cabia ser Manezim, ainda uma patente abaixo de Seu Manoel pai ou tio-avô dono das lunetas, aquele bem nascido em Portugal. O pêndulo vespertino vez em quando debandava em sonho, ele em um navio de Cabral pela rota inversa: o desenho das caravelas, sua cabeça roubou dos livros da escola, a sensação do velejo foi aprimorada pela náusea real de seu estômago fraco e o mar era só um rio imenso que balançava. A viagem atlântica não tinha chegada nem partida, só um pedaço de história, um horizonte inteiro e meia dúzia de homens com chapéus militares fora de época. Ali Manezim era grande, talvez capitão dos marinheiros, em busca das terras ibéricas como índias fossem, um mapa debaixo do braço e na cara os óculos do tio-avô, as lentes como duas bússolas indicando o norte, desvelando as formas dos continentes, as letras dos nomes e o contorno áureo refletindo um sol de abril.

Para Miguilim.

passado, pelas 01:34

1 Comments:

At janeiro 20, 2013 9:15 PM, Anonymous Anônimo disse...

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