16.8.06

Aquela menina

Quando criança, não comia melancia, com medo que nascesse uma dentro da barriga; achava que o sol era casado com a lua e a lua era feita de queijo; achava que a velocidade das nuvens se movendo no céu era a mesma da Terra girando. Queria pegar estrelas na mão. Imaginava que comer lápis de cor colorido coloria por dentro; que se plantasse moeda, nascia um pé de dinheiro; imaginava que moravam monstros embaixo da cama e que algumas bonecas eram malvadas; acreditava que Papai Noel existia e que os galhos das árvores caídos no chão, as renas tinham derrubado.

Mas acima de tudo, achava que quando crescesse seria mais feliz.

Estava cansada daquela rotina. Cansada das mesmas coisas. Da sem-gracice. Casa, trabalho. Trabalho, casa. Aliás, mais trabalho que casa. Milhares de horas extras não-pagas. E salário, sempre atrasado.

Mas seria diferente. Seria um dia de resgatar seu olhar ingênuo e fazer mil coisas gostosas. Porque precisava voltar a achar gostosas as pequenas coisas.

Já era tarde quando se espreguiçou. Ao fazer o café, esquentou as mãos no vapor. Viu a manteiga derreter no pão fresquinho que havia acabado de comprar. Estava feliz, no caminho da padaria recebeu um elogio de um estranho, mesmo estando com aquele moletom velho...

Tomou um banho bem quente e perfumado. Colocou um vestido novo, há muito tempo guardado. Foi passear.

Cumprimentou a vizinha chata com um sorriso. Tirou os sapatos para sentir a grama debaixo dos pés e foi sentar em um lugar movimentado, só observando as pessoas, porque elas sempre fazem coisas em meio à multidão achando que ninguém está vendo. Flagrou um executivo coçando a bunda, uma madame chorando, um menininho tentando espiar por debaixo das saias, uma mulher passando perfume, um adolescente tentando sentir se o braço estava fedendo, um homem fazendo xixi na árvore e uma menina maravilhada, seguindo uma trilha de formigas que levavam as folhas cortadas para casa, até que uma delas mordeu seu dedo e ela foi gritando procurar a mãe.

Já era mais de quatro da tarde, "É, o tempo passa rápido hoje", pensou. Abriu sua bolsa e pegou um pacote de biscoitos waffer e saboreou a cada um como se fosse o último, lentamente, camada por camada, prestando atenção no barulho crec crec que o mastigar fazia dentro de sua cabeça. Lambeu os dedos e estalou os lábios. E agora?

O telefone toca. É do trabalho. "Não, hoje eu sou livre". Não se enfiaria de novo naquela rotina de sua vida, sem coragem de fazer algo novo. Não mais sentiria saudade de ser feliz. Olhou o relógio. Suspirou. Estava quase na hora. Caminhou, sentindo o vento no rosto, achando tudo muito mais colorido que de costume.

Estava bem no alto. Olhou os trilhos lá embaixo. Último momento para lembrar as coisas boas. Do quanto era bom encher um balde d'água e brincar com a mão lá dentro, olhar para uma vela acesa e ver a chama dançar, comer um bom filé cheio de alho, beijar, abraçar, ter um ataque de riso, chorar no chuveiro só pra poder dizer que os olhos vermelhos foram por causa do xampu.

Já podia escutar o apito. Cada vez mais perto. Sim, era agora. Pulou. Mas não caiu; e o apito cada vez mais alto, gritando dentro do cérebro, sem parar, como marteladas.

NÃO!

Abriu os olhos, desligou o rádio, suspirou. O mesmo teto, a mesma cama. A mesma vida. "E eu sempre acordo", pensou, antes de ir trabalhar, dia após dia, como de costume, se perguntando pra onde ia aquela menina que tinha coragem de fazer diferente.

passado, pelas 22:11

7 Comments:

At agosto 17, 2006 10:19 AM, Blogger Ilizi disse...

e quando a gente vê, o amanhã já foi e a gente nunca fez nada...

 
At agosto 18, 2006 8:46 PM, Anonymous Anônimo disse...

ô que coisinha bonitinha esse texto! triiiste, mas muito fera. Se eu tiver um blog um dia, vcs visitam tb???

 
At agosto 19, 2006 12:09 AM, Anonymous Anônimo disse...

sempre pensei que bonecas fossem malvadas.

bonito texto.

 
At agosto 19, 2006 5:35 PM, Blogger Patr�cia disse...

Oi moça! Gostei do seu blog =)
=*

 
At agosto 20, 2006 9:39 AM, Anonymous Anônimo disse...

Hum::: nha.

 
At agosto 21, 2006 1:37 AM, Blogger loki, disse...

ó! curti muito.

E tá todo mundo pensando junto ultimamente heim?

até ;)

 
At setembro 25, 2006 12:34 PM, Anonymous Anônimo disse...

visitamos o blog sim, qualé?
texto muito bem construído. tem uma minuciosidade asfixiante até. mas no final, é outra sensação. parece que os brônquios foram libertos, sem gozar.
eu fiquei atrás, roxo, no apito.

 

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