19.9.05

Duas

As mães eram amigas de tricô, mas as duas se conheceram na escola.
Pelos idos de 40. Quase 50.
Aquela coisa: faziam os deveres, dividam as mesmas bonecas, pulavam da casa de uma para outra.
E todos diziam:
- São como irmãs.
Emoçaram juntas. Juntas no primeiro baile de carnaval, quando lançar perfume era mais divertido.
Não mais irmãs, "amigas íntimas", para os íntimos.
Tinham dezoito na época em que se separaram. Rute casou, bem bonita na igreja velha, como queria a mãe.
Porque querer, querer, Rute não queria. Embarrigou, deu nisso. Foi morar no Sul com o marido.
Elisa não foi se despedir, constipou e caiu de cama. Parece que constipação e consternação eram a mesma coisa na cabeça dela.
Recebeu bem depois a carta que esperava pra ontem:
- "Não gosto de beijar ele por causa do bigode", escrevia Rute com sua letra miúda.
Miúda a carta também, Elisa precisou de um bocado de lenços: constipou outra vez.
Uma dúzia de cartas distribuída em alguns anos. No resto do tempo, um longo vazio.
Elisa mudou de cidade e um pouco de vida. Virou economista ou algo assim, só sei que estudou.
Rute teve dois filhos meninos com o bigodudo.
E os três foram embora: primeiro o marido, pela clássica outra, depois os garotos, por razões outras.
Ano passado, Rute adoeceu, foi em março. Coisa complicada, de não ter jeito mesmo.
Sozinha no leito do hospital, vez em quando recebia visita da neta.
Passava o dia fazendo palavras cruzadas, ficava feliz quando dava conta das difíceis.
Chorava muito e o que mais queria era ver Elisa de novo. Foi por isso que a neta fez das tripas coração para ajudar a vó.
Achou um monte de "Elisas Pontes" no gugol e por fim conseguiu telefonar para o lugar onde Elisa trabalhava. Foi uma conversa rápida.
Uma semana depois, Elisa estava na cidade. Rute queria fazer tanta coisa, enfeitar o quarto, passar perfume e batom.
Conseguiu que a enfermeira arranjasse umas flores.
Elisa entrou na enfermaria e Rute falou que ela estava tão linda e sempre ficava bonita quando usava rosa.
Se olharam por uns vinte minutos, caladas. Ou mais, talvez.
- Tanto tempo, Rute... mas não vamos lamentar não...
- Você lembra do meu diário, Lisinha?
- Aquele que tinha seu nome bordado na capa, né? Que você não me deixava ler...
- É...era porque eu escrevia pra você, falava daquele carinho bom de sentir, que era tão forte, que eu tinha medo...
- Mas não precisava fugir do medo... ainda namorar aquele bruta-montes e por aí vai. Ai, que adianta, agora? Não vamos falar disso...
- Quero falar disso sim. Tantos anos, isso tá aqui guardado. Não posso te pedir nada, mas falar eu posso. Falar que eu te amei eu posso...
As duas ficaram vermelhas que nem maçã-do-amor.
- Não precisa pedir nada mesmo não. Eu vou ficar aqui com você um tempo, muito tempo.
Elisa olhou para as flores meio murchas no pote e respirou bem fundo:
- Rute, você podia vir morar comigo...

passado, pelas 17:13

11 Comments:

At setembro 20, 2005 9:52 AM, Anonymous Anônimo disse...

Lyn
Gostei mto do texto, mesmo. Da temática, da estrutura e tal. E principalmente, do fato de estar se embrenhando em lugares novos.

 
At setembro 20, 2005 9:02 PM, Anonymous Anônimo disse...

sensível e forte cacá
vc é mto boa nisso!
estou esperando o próximo... beijo

 
At setembro 20, 2005 11:42 PM, Anonymous Anônimo disse...

que lindo, que lindo o "você podia vir morar comigo"! inesperadamente feliz!

 
At setembro 21, 2005 12:58 AM, Anonymous Anônimo disse...

Carol!!!
Passei lá no seu fotolog e descobri o blog.
Adorei o que li.
Aliás, tô com um fotolog também: www.fotolog.net/diogo_machado_
Um beijão!

 
At setembro 21, 2005 1:16 PM, Anonymous Anônimo disse...

Nossa! Me lembrou o último romance dos los hermanos. Mas nesse caso foi o primeiro e o último, na verdade o único romance.

Bjins!

 
At setembro 21, 2005 1:24 PM, Blogger ADRIANO FACIOLI disse...

GENTE, BOTA O PERFIL DE VCS... É BOM SABER QUE ESTÁ ESCREVENDO... UM ABRAÇO

 
At setembro 22, 2005 12:41 AM, Blogger loki, disse...

po! muito bom!
me lembra um conto do rubem fonseca, que eu procurei mas não achei agora.

mas bem legal!

haha aquario em peixes com esse senso crítico? Puxa!

:)

 
At setembro 22, 2005 10:08 AM, Anonymous Anônimo disse...

Como sempre vc manda bem, né?
me orgulho muito disso...
te amo
Vitor

 
At setembro 22, 2005 3:27 PM, Anonymous Anônimo disse...

Realmente eu tenho q parar de ser emocional. Vc acredita q eu qse choro no final? Sinceramente, tenho q dar um jto em mim! Acho q eh indigestao de mtos "tomates verdes fritos". Ou serah q foi a azeitona?
abraco...

 
At setembro 23, 2005 5:16 PM, Anonymous Anônimo disse...

sensibilidade incansável.

 
At novembro 23, 2005 2:49 PM, Anonymous Anônimo disse...

carol,
você é esse conto. o alisson tem razão.

prazer em conhecê-la.

beto amaral

 

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