26.8.07

Eu não sou Clarice

Lispectorei, expectorei.
Mas o muco aderiu-se.
Às paredes de minhas palavras.
Tais letras revestidas de gosma.
Não são mais minhas. Nem de ninguém.

Chorei. E depois dobrei.
Pagando o dobro, riu-se.
Ela riu-se de mim, entusiasmada.
Entusiasmo de jogo, de aposta.
A aposta não era minha. Nem de ninguém.

Notei. E antes anotei.
Tomando pílulas, previniu-se.
Ela previniu-se da vida, mumificada.
Imóvel, tendo ao nariz uma mosca.
O nariz não era meu, nem de ninguém.

Viajei, surtei.
Mas a liberdade exauriu-se.
De dar bengala às minhas mancadas.
Ela não suporta quem se encosta.
O suporte não era meu. Nem de ninguém.

Ninguém tem liberdade.
A liberdade é de ninguém.
Ninguém pode ser Clarice.
Eu não posso ser Clarice.




passado, pelas 18:37 0 comentários

14.8.07

Num adianta, que esse é o nosso romantismo, a gente sempre vai pintar as pessoas de quem a gente gosta.

Saíram ainda muitas outras coisas, genial como em meio a tanta diferença cabiam muitas parecenças. Sobe e desce o copo americano, some e aparece, senta e levanta, desliza a mão no cetim florido, deslizam nas palavras e recaem no desejo. Vãs teorizações...


Em casa, quando deitou veio de imediato aquela coisa na cabeça: sempre iria pintar as pessoas. Tinha verdadeiro fascínio por cores. O jogo de combinações, as diferentes nuances e texturas, em lápis, linhas, tecidos e tintas. Lembrou das tintas que vira na vida. Era muito tátil, vinha logo a textura. Se ajeitou e o cheiro do cheiro invadiu as narinas, era muito olfativa, também.


Em sonho, pintou as pessoas, literalmente. Acordou embriagada de cores. Certamente era fim de tarde, muitos tons em diferentes potes escorregando de macios pincéis, firmes mas suaves em suas mãos, horas livremente, outras preenchendo delicados contornos em nanquim sobre as peles. Muito azul e branco, e aí a memória resgatou a vitrola laranja da infância rodando Paulinho da Viola no canto. E tinha também alguns olhares acolhedores vez por outra, ouviu a risada do cheiro ainda impregnado, já acordara mas remanchava, isso já eram associações bem acordadas. Acordos tácitos...


Dali em diante, sabia, recairia em zil ses e senões. Passaria dias a fio fazendo e desfazendo suposições, como quando ficava treinando aquele pronto de crochê. E de nada adiantaria. De concreto, só as memórias borradas de um gole a mais de cor na sua madrugada de 6ª feira.

passado, pelas 19:05 2 comentários

passeio completo

antes de sair, vou deixar o sapato
na porta,
que é onde deve ficar.
vou arrumar um novo molho de chaves
e destrancar as portas, as janelas, os cofres,
vou trocar todas as fechaduras do meu corpo.
sempre que penso em ir embora,
a água da minha pia se desdobra em maremoto,
envia uma onda que me busca
e quebra no meu quarto, inundando
tudo o que tenho de mais frágil.
vou desligar o gás e manter aceso o fogo
que tenho nas veias.
os últimos recados estarão colados na porta da geladeira,
as contas, os telefones de tele-entrega, os de emergência.
ao lado da minha cama, uma muda de roupa e um bilhete
- esse para mim mesmo.
pretendo voltar.

passado, pelas 00:45 4 comentários

ode a mim e aos meus

reconheço que bondade grande
passa por cegueira.
não é.
um dia
meu pai me disse,
corre, menino.
mas não era pra alcançar;
'é pra cansar, que vento marca'.
minha mãe quis apenas o trivial:
duas pencas de sonho e dinheiro na conta,
ou o que der pro gasto.
eu, de longe, sou o que mais não-sei.
mas respiro e durmo
que já é paz pros dois.

passado, pelas 00:35 1 comentários

Links

Arquivo

Powered by Blogger