31.8.06

Não me leve a mal, mas esqueça aqueles livros de auto-ajuda. Eles são caros demais para exigirem tanto de ti. Prefira as enciclopédias e os dicionários. Além da capa dura, possuem definições claras e objetivas. E a desculpa dos avanços e desavanços tecnológicos para justificarem seus erros.


Agora falando de cinema, luz, câmera e ação! Fique atenta ao raccord. Esquerda na esquerda. Direita na direita. E o centro deslocado geometricamente. Assimetria de influência japonesa, que só as gueixas com tendência ao estrabismo são capazes de perceber. Mas nada que uns bons óculos não resolvam. Janelas da alma envoltas em aros grossos e coloridos. Afinal, é preciso manter a habitual vanguarda.


E o que está na moda agora é o démodé. Insegurança de minha parte, talvez. Mas não consigo tirar minha calça boca-de-sino do armário. O problema deve ser sua estampa florida. Um tanto primaveril para se usar nesses dias de inverno. Na atual estação, prefira, sobretudo, o sobretudo.


Não é porque largou os livros de auto-ajuda que vai começar a ler novelas de banca de jornal. Sabrina, Júlia, Katrina. Nem com a rima, são nomes que sua futura filhinha desejará ter. Aposte em Lolita, que ela há de lucrar mais. Referências literárias e preconceitos à parte, se conselhos fossem bons não estariam aqui de graça. E se lugar comum fosse ruim, não seria tão comum assim. Afinal, o que vem fácil, vai fácil. Vai, vai, vai, vai. Não vou.

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16.8.06

Aquela menina

Quando criança, não comia melancia, com medo que nascesse uma dentro da barriga; achava que o sol era casado com a lua e a lua era feita de queijo; achava que a velocidade das nuvens se movendo no céu era a mesma da Terra girando. Queria pegar estrelas na mão. Imaginava que comer lápis de cor colorido coloria por dentro; que se plantasse moeda, nascia um pé de dinheiro; imaginava que moravam monstros embaixo da cama e que algumas bonecas eram malvadas; acreditava que Papai Noel existia e que os galhos das árvores caídos no chão, as renas tinham derrubado.

Mas acima de tudo, achava que quando crescesse seria mais feliz.

Estava cansada daquela rotina. Cansada das mesmas coisas. Da sem-gracice. Casa, trabalho. Trabalho, casa. Aliás, mais trabalho que casa. Milhares de horas extras não-pagas. E salário, sempre atrasado.

Mas seria diferente. Seria um dia de resgatar seu olhar ingênuo e fazer mil coisas gostosas. Porque precisava voltar a achar gostosas as pequenas coisas.

Já era tarde quando se espreguiçou. Ao fazer o café, esquentou as mãos no vapor. Viu a manteiga derreter no pão fresquinho que havia acabado de comprar. Estava feliz, no caminho da padaria recebeu um elogio de um estranho, mesmo estando com aquele moletom velho...

Tomou um banho bem quente e perfumado. Colocou um vestido novo, há muito tempo guardado. Foi passear.

Cumprimentou a vizinha chata com um sorriso. Tirou os sapatos para sentir a grama debaixo dos pés e foi sentar em um lugar movimentado, só observando as pessoas, porque elas sempre fazem coisas em meio à multidão achando que ninguém está vendo. Flagrou um executivo coçando a bunda, uma madame chorando, um menininho tentando espiar por debaixo das saias, uma mulher passando perfume, um adolescente tentando sentir se o braço estava fedendo, um homem fazendo xixi na árvore e uma menina maravilhada, seguindo uma trilha de formigas que levavam as folhas cortadas para casa, até que uma delas mordeu seu dedo e ela foi gritando procurar a mãe.

Já era mais de quatro da tarde, "É, o tempo passa rápido hoje", pensou. Abriu sua bolsa e pegou um pacote de biscoitos waffer e saboreou a cada um como se fosse o último, lentamente, camada por camada, prestando atenção no barulho crec crec que o mastigar fazia dentro de sua cabeça. Lambeu os dedos e estalou os lábios. E agora?

O telefone toca. É do trabalho. "Não, hoje eu sou livre". Não se enfiaria de novo naquela rotina de sua vida, sem coragem de fazer algo novo. Não mais sentiria saudade de ser feliz. Olhou o relógio. Suspirou. Estava quase na hora. Caminhou, sentindo o vento no rosto, achando tudo muito mais colorido que de costume.

Estava bem no alto. Olhou os trilhos lá embaixo. Último momento para lembrar as coisas boas. Do quanto era bom encher um balde d'água e brincar com a mão lá dentro, olhar para uma vela acesa e ver a chama dançar, comer um bom filé cheio de alho, beijar, abraçar, ter um ataque de riso, chorar no chuveiro só pra poder dizer que os olhos vermelhos foram por causa do xampu.

Já podia escutar o apito. Cada vez mais perto. Sim, era agora. Pulou. Mas não caiu; e o apito cada vez mais alto, gritando dentro do cérebro, sem parar, como marteladas.

NÃO!

Abriu os olhos, desligou o rádio, suspirou. O mesmo teto, a mesma cama. A mesma vida. "E eu sempre acordo", pensou, antes de ir trabalhar, dia após dia, como de costume, se perguntando pra onde ia aquela menina que tinha coragem de fazer diferente.

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