27.2.06

Sapucaí
[reflexões em um domingo de carnaval]

Há quem diga que é o maior espetáculo da terra.
Há quem ache absolutamente ridículo e até coisa de belzebu.

Há alguns anos atrás, como assumida anti-social que sou, passava as noites em casa, assistindo o desfile das escolas de samba na televisão. Às vezes, ia dormir tarde da madrugada esperando a entrada da Estação Primeira de Mangueira, que sempre atraiu minha simpatia - talvez por seu quê de vanguarda ou porque eu simplesmente queria imitar alguém que gostava.

Hoje, zapeando pelas emissoras enquanto tomava um café recém-passado, na esperança de espantar o tédio que ronda Brasília, peguei o final do desfile do Salgueiro. Não entendi nada do enredo, a Globo já tinha passado a legenda típica "para o pessoal de casa cantar e sambar junto". Em compensação, ouvi uma daquelas frases felizes que só os comentaristas globais (sem esquecer dos da Veja, grandes papas da abobrinha) têm o dom de bolar. Era alguma coisa assim:

"O carnaval do Rio é manifestação mais criativa do Brasil."

Vários problemas aí. Primeiro: O Brasil é o Rio (Brasil = Rio). Tudo bem, Rio de Janeiro é mesmo uma cidade linda, cheia de coisas legais e ilegais. Mas por favor, quem não está cansado dessa rasgação-de-seda eterna? Já não bastam as novelas da Zona Sul? O show dos Rolling Stones? A prefeitura da cidade financiando todos os filmes com a temática do carioca way of life?

Me poupe, Salgadinho.
Os quase 170 milhões "restantes" da população brasileira agradecem.

Segundo: "mais criativa"? O cara deve ter problemas de dicção, engoliu a primeira sílaba e saiu outra palavra. No fundo, ele queria dizer "mais lucrativa". Porque cá entre nós, a grana que esse carnaval movimenta é de fazer inveja a qualquer caixa dois. E a gente não precisa ir muito longe para lembrar de manifestações bem mais criativas, carregadas de história, que resistem até hoje e estão sempre sendo ressignificadas, reformuladas. Sem esforço, acabei de me lembrar de três: folia de reis, maracatu e congado. Alguém arrisca outra?

E nem venha me dizer que isso é coisa de antropólogo. Se você acha que é, desculpa - está mais afogado na lavagem cerebral global do que imagina.

Claro que tem o fator do envolvimento da comunidade, do êxtase ao entrar da Sapucaí. Isso tem um enorme valor - valor simbólico se iguala ao das outras manifestações. Sem tirar nem pôr. Talvez tirando um pouco, nos momentos em fazer sua fantasia ou aprender o passo não passa de uma operação automática na máquina carnavalesca. Igualzinho a Tempos Modernos.

"O carnaval é a dominação pela alegria".
Mais ou menos assim é a frase abre-alas do filme "Cronicamente Inviável".
É a idéia mais certa e sumária que já ouvi sobre o carnaval.

Tive ânimo para assistir o Salgueiro chegando na dispersão - não sei se houve atraso e se o recuo da bateria deu certo. Foi o tempo de ouvir uma mulher entrevistando a sorridente Luana Piovani - que falou algumas palavras enquanto continuava sambando. Ainda vi a cena da Luana abrindo os braços e balbuciando o enredo, mas desliguei enquanto ela fazia a viradinha e a câmera dava aquele clássico close na bunda dela.

Paixão nacional, sabe como é.
"Êta Globarbarização", já diria o Tom Zé.

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20.2.06

Num Tropeço

Sufocado, novamente na rua, do lado errado
Esperando um ônibus que já passou
Mal sabia eu
Há tanto tempo
Tanto aconteceu
Há tanto tempo que o próprio tempo se perdeu

Quando o inevitável
Era ainda só possível
Quando o passado era promessa
O presente era uma crença
E eu mal sabia de mim
Menos ainda que seria assim
Não falo somente da barba
Falo das pessoas que não sou
Dos lugares que não vi
Do passado no papel
Da imagem empoeirada
De uma escola demolida
E de veneno de barata

Um dia, de tropeço
Caio em mim e penso
Não abri meu pára-quedas
A inalienabilidade do ser
Com a profundidade do espelho

Que reflete, mas não pensa
Do curinga, que encena, mas não é


Ice Coffee

passado, pelas 19:09 8 comentários

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